domingo, fevereiro 3

A Carta, por Rafael


O HOMEM-ÁRVORE*(Carta a Pierre Loeb)Antonin Artaud
O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,mas de vontade e árvore de vontade que anda,voltará. Existiu, e voltará.Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,ingestão, assimilação,incubação, excreção,o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam os domínio da vontade decisora,a vontade que em cada instante decide de si;porque assim era a árvore humana que anda,uma vontade que decide a cada instante de si,sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.Do que somos e queremos na verdade pouco resta,um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?Um organismo de engolir, pesado na sua carne,e que defeca e em cujo campo,como um irisado distante,um arco-íris de reconciliação com Deus,sobrenadam,nadam os átomos perdidos,as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.Quem foi Baudelaire?Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?Corpos que comeram, digeriram, dormiram,ressonaram uma vez por noite,cagaram entre 25 e 30 000 vezes,e em face de 30 ou 40 000 refeições,40 mil sonos, 40 mil roncos,40 mil bocas acres e azedas ao despertar,tem cada qual de apresentar 50 poemas,o que realmente não é de mais,e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática está muito longe de ser mantido,está todo ele desfeito,mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.Nós somos os 50 poemas,o resto não somos nós,mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.Um organismo de engolir vive de nós a seguir.Ora, este nada nada é,não é qualquer coisa mas alguns.Quero dizer alguns homens.Animais sem vontade nem pensamento próprio,ou seja, sem dor própria,que em si não aceitam vontade de uma dor própria e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,fizeram este alambique de merda,esta barrica de destilação fecal,causa de peste e de todas as doenças e deste lado de híbrida fraqueza,de tara congênita, que caracteriza o homem nato.Um dia o homem era virulento,só era nervos elétricos,chamas de um fósforo perpetuamente aceso,mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,essa cova de oco entre dois foles de força que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,e a vida mágica do homem caiu,caiu do seu rochedo com ímãe a inspiração que era o fundo passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,talvez excelência mais à frente de um tal acervo de horrores,que mais valia nunca ter nascido.Não era o estado de paraíso,era o estado-manobra, - operário,o trabalho sem rebarbas, sem perdas,numa indescritível raridade.Mas esse estado por que não continuou?Pelas razões que levam o organismo de animal,que foi feito para e por animais e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir. Exatamente pelas mesmas razões.Mais fatais umas do que outras.Mais fatal a explosão do organismo dos animais que a do trabalho único no esforço dessa vontade única e muito impossível de encontrar.Porque realmente o homem-árvore,o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,a capa ilusória do outro,prosseguiu na sua vontade mas oculta,sem compromissos nem contacto com o outro.E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo, mas logo depois com muita força,estilo bomba,irá revelar a sua insanidade.Porque devia criar-se um crivo entre o primeiro dos homens-árvores e os outros,mas aos outros foi preciso o tempo,séculos de tempopara os homens que tinham começado a ganhar o seu corpo como aquele que não começou e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,e não havia lá ninguém,e lá não havia começo.E então?Então.Então as deficiências nasceram entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.Em breve esse trabalho será concluído.E a carapaça terá de ceder.A carapaça do mundo presente.Levantada sobre as mutilações digestivas de um corpo esquartelado em dez mil guerras e pela dor, e a doença, e a miséria,e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.Os que sustentam a ordem do lucro das instituições sociais e burguesas,que nunca trabalharam, mas grão a grão amealharam o bem roubadobilhões de anos e conservado em certas cavernas de forças defendidas pela humanidade inteira,com algumas tantas exceções vão ver-se obrigados a gastar as energias nessa coisa que é combater,vão lá poder deixar de combater, pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica, que há de vir,está a sua cremação eterna. Por isto mesmo julgo que o conflito entre a América e a Rússia, reforçado ele seja a bombas atômicas,pouco vai serão lado e em face do outro conflito que vai repentinamente estalar entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,e por outro o homem de vontade pura e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.
ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110.

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